Menu fechado

A ameaça da prisão por dívida tributária

STJ deixa prosseguir denúncia contra dois sócios de uma pequena empresa que declarou e não pagou R$ 30 mil de ICMS

Há mais de cinquenta anos o Supremo Tribunal Federal veda a apreensão de mercadorias do contribuinte inadimplente. Há quase uma década o Superior Tribunal de Justiça decidiu que o não pagamento de tributo declarado, embora constitua ilícito da empresa, punível com multa, não é infração pessoal do administrador, cujo patrimônio não responde pela dívida.

Onde não cabe reter as mercadorias da empresa, cabe prender o seu gestor? Pode este pagar com a liberdade por aquilo a que não responde com os seus bens? As negativas parecem óbvias, mas o STJ inesperadamente respondeu que sim, deixando prosseguir denúncia contra os dois sócios de uma pequena empresa que declarou e não pagou R$ 30 mil de ICMS (HC 399.109). O recurso dos empresários foi distribuído ao Ministro Roberto Barroso e aguarda julgamento pelo Pleno do STF (RHC 163.334).

Os integrantes da 3ª Seção do STJ merecem a nossa admiração intelectual e pessoal. Neste caso, porém, somos forçados a dizer que a corrente majoritária partiu de uma premissa inexata e seguiu um método inadequado. A lei define como crime “deixar de recolher valor de tributo descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo” (apropriação indébita). Desconto de tributos na fonte é coisa corriqueira. A premissa equivocada foi a de que a cobrança de tributo por um particular contra outro não existiria na prática, pois só o Fisco teria tal poder. Daí decorreu o desvio metodológico: entender que, inadmitindo leitura jurídica, o termo mereceria interpretação econômica, alcançando as situações em que há mero repasse para os preços do ônus tributário, como no ICMS.

Ora, são muitos os casos de cobrança de tributo por pessoas privadas. Basta pensar na contribuição para a iluminação pública, cobrada dos consumidores pela distribuidora de energia, na conta mensal. Ou na substituição tributária para a frente, onde o atacadista cobra do varejista, por fora do seu preço (onde está embutido o ICMS do primeiro), um valor apartado a título de antecipação do imposto correspondente à futura venda a ser realizada pelo segundo. Já sobre o desvio metodológico, vale lembra que a influência da Economia sobre o Direito dá-se no momento da criação ou modificação deste pelo legislador, mas não no de sua interpretação pelos juízes, que devem ater-se aos critérios próprios da ciência jurídica.

Ao comprar uma mercadoria, o consumidor paga apenas preço, e não tributo. O ICMS é devido em nome próprio pelo vendedor, que não é mero depositário de um inexistente imposto a cargo do comprador. Longe de ser uma tertúlia entre iniciados, o tema reveste-se de enorme repercussão jurídica, econômica e social.

Primeiro porque a prisão por dívida – módica ou avassaladora, pouco importa – é vedada pela Constituição e por tratados assinados pelo Brasil. Segundo porque a decisão do STJ ameaça a liberdade de milhares de empresários (16 mil só em São Paulo, informa a capa desta Folha em 19.12.2018), debilitando a atividade econômica e a geração de empregos e também de tributos. E terceiro porque essa orientação é contraproducente: se está sujeito à prisão caso sonegue (o que é indiscutível), mas também caso declare e não pague, o contribuinte sem recursos tenderá a adotar a primeira conduta em vez da segunda, deixando de colaborar com o Fisco para apostar na chance de não ser descoberto.

Não prender não é ser leniente. A lei é dura também para o devedor confesso: multa, negativa de certidão, protesto. A criminalização da dívida tributária foi rechaçada pelo STF no auge do período autoritário (RE em HC 67.688). Não é na democracia que haverá de prosperar.

Ives Gandra da Silva Martins – Professor emérito da Universidade Mackenzie e das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército – ECEME. Membro do Conselho de Notáveis da UNISESCON e Presidente do Conselho Superior de Direito da FECOMERCIOSP

Igor Mauler Santiago – Doutor em Direito. Membro da Comissão Tributária do Conselho Federal da OAB. Advogado de um dos recorrentes perante ao STF